Israel, Gaza e o preço da indignação seletiva
Por Sónia Almeida
1. O peso histórico da sobrevivência
Desde a sua criação em 1948, o Estado de Israel tem enfrentado ameaças existenciais por parte de actores estatais e não estatais na região. As guerras de 1948, 1967 e 1973, assim como décadas de terrorismo perpetrado por grupos como a OLP, o Hezbollah e, mais recentemente, o Hamas, colocaram Israel numa posição de constante vigilância e autodefesa. Contudo, o seu direito de agir em legítima defesa tem sido, ao longo das décadas, sujeito a um escrutínio desproporcional por parte da comunidade internacional.
O ataque de 7 de outubro de 2023 marca uma inflexão neste padrão, tanto pelo seu carácter brutal como pelas suas consequências estratégicas e jurídicas. Este artigo examina o impacto desse evento à luz do DIH, discute o tratamento desigual a que Israel é sujeito nas arenas diplomática e mediática, e propõe uma revisão crítica da arquitectura legal vigente face à guerra assimétrica.
2. O 7 de Outubro e a Violação do Jus in Bello
O ataque de 7 de outubro de 2023, perpetrado pelo Hamas, não constituiu um mero atentado terrorista, mas um massacre planeado e executado contra civis — incluindo crianças, idosos e bebés — seguido do sequestro de dezenas de pessoas, mantidas desde então em condições que violam flagrantemente as Convenções de Genebra. Os actos cometidos nesse dia configuram, de forma inequívoca, crimes de guerra.
O estatuto civil das vítimas é incontestável: não se tratava de combatentes, mas de civis deliberadamente visados. No entanto, a resposta internacional a esta violação foi marcada por um silêncio relativo ou, quando houve reacção, por tentativas de contextualização que, na prática, funcionaram como formas de relativização moral.
3. A Estratégia Cínica do Hamas e o Dilema Ético de Israel
O Hamas opera segundo uma lógica profundamente cínica, instalando os seus centros de comando, arsenais e lançadores de foguetes sob escolas, hospitais e mesquitas. Esta prática, além de violar o princípio da distinção consagrado no DIH, visa capitalizar politicamente sobre as inevitáveis baixas civis decorrentes da resposta israelita.
Israel, por seu lado, enfrenta um dilema singular: esperar e negociar, arriscando o rearmamento do inimigo e a própria segurança, ou agir de forma contundente, arriscando a vida dos reféns e sofrendo a condenação internacional. Este dilema, mais do que militar, é profundamente ético e jurídico, e coloca Israel perante exigências que raramente são colocadas a outros Estados modernos em guerra.
4. Proporcionalidade e a Ilusão da Simetria
A doutrina da proporcionalidade, frequentemente invocada contra Israel, é mal compreendida na opinião pública. O DIH não exige uma equivalência numérica de vítimas, mas sim que o uso da força seja proporcional aos fins militares legítimos visados. O objectivo de Israel — o desmantelamento do Hamas e a libertação dos reféns — é claramente compatível com os parâmetros do jus in bello.
Contudo, ao impor a Israel a responsabilidade quase exclusiva de distinguir entre civis e combatentes, mesmo quando essa distinção é intencionalmente obscurecida pelo inimigo, a comunidade internacional incorre numa perversão do próprio espírito do DIH: o de proteger civis e não de recompensar os que abusam da sua protecção.
5. A Instrumentalização dos Reféns
A guerra do Hamas não terminou a 7 de outubro. Prossegue sob a forma da manutenção de dezenas de reféns em cativeiro, num regime que conjuga crueldade física com exploração política. Estas pessoas — mulheres, crianças, idosos — não são apenas moeda de troca: são escudos humanos, peças de uma estratégia que utiliza o sofrimento como capital mediático.
A omissão da comunidade internacional neste ponto é reveladora. Apesar da preocupação declarada com a situação humanitária em Gaza, o drama dos reféns é frequentemente secundarizado — como se o seu destino fosse marginal e não um dos elementos centrais do conflito.
São disso reveladores, as fotografias e vídeos recentemente divulgados pelo Hamas, mostrando David Evyatar — raptado a 7 de Outubro — a cavar a sua própria cova, algures num túnel; são profundamente perturbadoras e evocam, de forma arrepiante, as imagens dos horrores do Holocausto. A instrumentalização da humilhação, o cenário subterrâneo e o desespero gravado em vídeo remetem para um imaginário de brutalidade que julgávamos irrepetível. Este tipo de exibição pública de crueldade não é apenas uma violação flagrante do direito internacional humanitário — é uma afronta à memória histórica e à consciência moral da humanidade.6. Uma Guerra por Procuração: O Papel do Irão
O conflito em Gaz
a é
apenas uma das frentes da guerra que Israel enfrenta. No norte, o Hezbollah,
financiado e armado pelo Irão, lança ataques regulares sobre território
israelita. No Mar Vermelho, os houthis, também apoiados por Teerão, ameaçam a
navegação internacional. Na Cisjordânia, a incitação promovida pelo Irão agrava
a tensão social. E internamente, cresce a fricção entre cidadãos árabes e
judeus israelitas.
O Irão é, portanto, o orquestrador de uma guerra regional por procuração. O seu objectivo não é a criação de um Estado palestiniano viável, mas a destruição de Israel e o colapso dos esforços de aproximação entre o Estado hebraico e os países árabes moderados.
7. O Discurso Internacional e a Falácia da Neutralidade
A declaração do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, segundo a qual “os ataques não ocorreram num vácuo”, ilustra a tendência internacional para a contextualização do terror quando as vítimas são judias. Proferida logo após o massacre de civis, a sua formulação ofereceu uma aparência de justificação que, ainda que não intencional, foi explorada politicamente por actores hostis a Israel.
Trata-se de um padrão antigo: o trauma judeu é frequentemente submetido a exigências explicativas que não se aplicam a outras vítimas. Esta assimetria narrativa reforça uma forma insidiosa de preconceito e enfraquece a coerência moral das instituições internacionais.
8. A ONU e a Crise da Autoridade Moral
As Nações Unidas, concebidas como garantes da paz e justiça internacionais, enfrentam uma profunda crise de credibilidade. A UNRWA, apesar do seu papel humanitário, tem sido associada a actividades terroristas. A Assembleia Geral dedica mais resoluções a Israel do que a regimes como a Coreia do Norte ou a Síria. Escândalos envolvendo capacetes azuis e a paralisia do Conselho de Segurança agravam esta erosão institucional.
A ONU mantém relevância operacional, mas perdeu a autoridade moral necessária para ser árbitro credível em conflitos como o israelo-palestiniano.
9. Israel como Bode Expiatório Global
Israel é julgado por um padrão de exigência único no sistema internacional. As causas são múltiplas:
- Óptica do poder: O seu poder militar obscurece a percepção da sua vulnerabilidade.
- Projecção pós-colonial: Certos sectores transferem para Israel as culpas do colonialismo europeu.
- Estigma histórico: Israel é, como disse Abba Eban, “o judeu entre as nações”, cobrado por uma perfeição moral inalcançável.
- Narrativa mediática: O sofrimento civil em Gaza domina os meios de comunicação, enquanto os crimes cometidos contra israelitas — incluindo violações e assassínios em massa — são frequentemente ignorados ou relativizados.
10. Conclusão: Por uma Ética da Coerência
Afirmar o direito de Israel a existir e a defender-se não exige aprovação irrestrita das suas políticas. Da mesma forma, reconhecer o sofrimento palestiniano não implica a validação de organizações terroristas como o Hamas. O que se exige é coerência moral: a recusa em confundir resistência com massacre, crítica legítima com equivalência moral, e justiça com sentimentalismo seletivo.
Como advertiu Hannah Arendt, “a triste verdade é que a maior parte do mal é feita por pessoas que nunca decidem ser boas ou más.” Hoje, mais do que nunca, impõe-se essa decisão — por parte das instituições, dos líderes e da sociedade civ
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