O Governo de Cabo Verde e a Matemática do Ridículo

 


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Acabei de ler, incrédula, o artigo publicado sobre o encontro entre o Governo e os parceiros internacionais a propósito do trabalho feito, em curso ou por fazer em São Vicente1Feito de generalidades, mas nada de concreto. Uma verdadeira patacoada, destituída de qualquer sentido ou valor. Como se costuma dizer: «É só discurso para o inglês ver».

Mais uma vez, o poder político apresenta números, discursos e promessas… mas resultados? Zilch, nothing, nada.

Numa das suas declarações, o ministro Paulo Rocha dizia:

“Apresentamos também os levantamentos feitos pelas autoridades em termos de infraestruturas e outros, e demos a conhecer aos nossos parceiros aquilo que são as necessidades de financiamento para fazer face, a curto, médio e longo prazo, aos impactos da tempestade. Trouxemos aqui as medidas que estão a ser implementadas, mas também aquilo que é o esforço que nós podemos fazer para reabilitar São Vicente, Santo Antão - Porto Novo e também a ilha de São Nicolau.”

“Opacidade e Conivência: Quando a Prestação de Contas se Transforma em Espectáculo”

Tudo dito num tom de quem presta contas, mas sem apresentar uma única prova. Não há relatórios públicos, não há cronogramas, não há dados concretos sobre o destino dos fundos, os beneficiários ou o impacto real das medidas. Só palavras… demasiadas palavras para dizer tão pouco, mas ao mesmo tempo, tão reveladoras.

Senão vejamos: montantes impressionantes - 35 milhões de euros a curto prazo, 350 milhões a longo prazo. Mas, quando confrontado, o ministro admite que “é impossível precisar os valores”.  Assim, o que deveria ser um momento de prestação de contas e dignidade governativa acabou transformado num exercício de autopromoção, numa encenação política de ocasião ou, sejamos francos, numa antecâmara de campanha eleitoral que, mais do que expor as limitações do governo, expôs o próprio país ao ridículo perante os seus parceiros internacionais.

E o Ministério das Finanças? Presente em todas as fotografias, mas ausente no essencial: a explicação clara e documentada da origem, da gestão e do destino dos fundos. E atenção, não estamos a falar de física quântica nem de teorias multidimensionais, mas apenas de somas, subtrações e divisões. Contas simples, que por algum motivo parecem mais difíceis de resolver do que as equações de Friedmann ou Einstein.

Dito isto, é difícil esquecer a dificuldade que teve um dos nossos políticos em ler números decimais num vídeo que se tornou viral. Hilariante… mas triste. Triste porque revela algo mais profundo: a banalização da incompetência e a ausência de responsabilidade.

Os parceiros internacionais e a moral seletiva da “cooperação”

Não menos inquietante seria imaginar a atitude dos chamados “parceiros internacionais”.
Poder-se-ia supor que representantes das Nações Unidas, da União Europeia, e do Banco Mundial e doadores bilaterais, presentes, ouviram, sorriram, tiraram fotografias… e que, possivelmente, nada perguntaram ? Nenhuma exigência de transparência, nenhuma auditoria, nenhum pedido de dados verificáveis?
Ter-se-ão simplesmente limitado a assistir, educadamente, a este teatro da “cooperação”, onde todos fingem acreditar para não perturbar o protocolo diplomático? Esperemos que o façam longe das câmaras e olofotos.

Sendo este o caso, aqui se impõe a pergunta: que credibilidade resta hoje às grandes organizações internacionais? A sua imagem, já profundamente desgastada aos olhos do mundo, erodiu-se por completo em sucessivos episódios de omissão, parcialidade e contradição? Poderá tratar-se de instituições que falam em ética, mas silenciam quando lhes convém? Que exigem rigor aos países frágeis, mas se acomodam à opacidade de governos? E, ainda assim, estarão a encenar a mesma mise en scène - reuniões, relatórios, sorrisos e promessas - como se a aparência da acção bastasse para substituir a verdadeira responsabilidade. E os velhos e bons conceitos de honra e integridade, por que ruas de amargura  se perderam?

A perda da confiança e a aritmética moral

Mas há uma conta ainda mais difícil de resolver e que não me canso de apontar: a do descrédito e da desconfiança.  O que ter-se-á perdido, não é apenas dinheiro público ou tempo político - é a confiança do povo cabo-verdiano e, em particular, a dos mindelenses, que há décadas veem promessas acumularem-se sem que nada mude.

Depois de meio século de desilusões e de serem tratados como cidadãos de segunda, muitos vivem hoje num estado de torpor - como se tivessem sido privados da visão do seu próprio valor, da fé em si mesmos e da crença de que a ilha merece melhor.
A desconfiança instalou-se como uma névoa densa e paralisadora sobre o arquipélago, tornando quase impossível distinguir o real do ilusório, o compromisso da encenação.

E é aqui que a questão deixa de ser meramente económica ou política: é moral.
Como diria Kant, a responsabilidade não é uma opção; é o fundamento da acção ética.
E Sócrates, se fosse vivo, perguntaria: “Como se pode governar uma cidade que perdeu o sentido da verdade?”

O que está em jogo já não é apenas a gestão dos fundos, mas a cumplicidade de um sistema que prefere a aparência de estabilidade à verdade da responsabilidade. As instituições que se proclamam ‘parceiras do desenvolvimento’ e que, porventura, compactuam com esta opacidade governativa, arriscam-se a tornar-se co-responsáveis por um modelo onde se fala muito de resiliência e de mitigação da pobreza, mas pouco se constrói, excepto discursos.

Enquanto os milhões se anunciam e as promessas se repetem, as cidades continuam com os mesmos buracos, as mesmas infraestruturas frágeis, o mesmo vazio de sempre e uma profunda frustração. Um vazio que pesa, entristece e denuncia o abandono de quem deveria zelar pelo bem comum. A confiança do povo do arquipélago, e de São Vicente em particular, sofre igualmente com este tipo de comportamento: depois de décadas de promessas não cumpridas, o cidadão médio sente-se impotente, descrente e excluído do destino do próprio país.

No fim das contas, a resiliência não passa de um puro exercício de estilo.

Tudo isso lembrou-me da célebre frase de Oscar Wild: ‘Foram pesados, medidos… e mostraram-se incapazes’. E, enquanto isso, o país e os cidadãos permanecem à mercê de promessas vazias e gestos de fachada.”

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