Cabo-Verde ! De Bestial a Besta
Como é que
pudemos chegar a esse ponto? Quando é que perdemos todo sentido
do decoro? Como é que atravessámos a fronteira dos ideais nobres que consistiam
em criar uma sociedade justa, educada e próspera, para uma sociedade que não
hesita em sacrificar os interesses de todos, a saúde e o bem-estar de gerações
futuras, em benefício de meia dúzia de pessoas?
E no entanto, cá estamos. Num abrir e fechar de olhos, sem qualquer escrúpulo, o
governo e o maior partido da oposição votaram a 12 de janeiro de 2018, um
decreto que estipula um aumento de 15 a
20% dos direitos de importação sobre o leite, podendo essas taxas atingir is 35% sobre derivados do leite tais como yogurtes, natas etc.
Esta decisão que afectará os consumidores, só poderia
ser compreendida se tivesse sido tomada com o intuito de proteger uma indústria
existente ou na sua fase inicial onde o país teria algum tipo de vantagem
comparativa. Esta seria a única condição em que isso poderia justificar os
sacrifícios que deverão ser consentidos pela população, uma vez que as tarifas
irão beneficiar um produtor nacional e o
governo, à custa dos consumidores. Uma
situação inegavelmente questionável do ponto de vista ético que tresanda a
corrupção.
No entanto e uma
vez mais, esse tipo de acções seria compreensível se o país pudesse daí retirar qualquer vantagem económica ou social a
curto, médio ou longo prazo. Infelizmente, parece-me muito pouco provável
que isso venha a acontecer.
Cabo Verde não
possui uma única vantagem comparativa neste sector. E se possuir, agradeço que
me elucidem.
Senão
vejamos :
- Cabo Verde não
dispõe de gado produtor de leite de nenhuma espécie. Tanto é que a produção
« doméstica » do leite,
preconizada e protegida por lei, far-se-á a partir de leite em pó.
- A maior parte
das suas terras são áridas e quase totalmente desprovidas de pastagens. A terra
arável em Cabo Verde, que também inclui pastagens, foi estimada a 12,41% do seu território total em 2015.
- A água é
escassa e a maior parte da população só tem acesso a água dessalinizada.
O processamento
do leite proposto por esta nova fábrica, cujo antigo administrador é agora o
Ministro das Finanças, implica importação de leite em pó de origem incerta, que
depois de misturado com água - dessalinizada ou proveniente de fontes de água
doce com um caudal bastante limitado e de salubridade questionável – é empacotado
em embalagens, elas também, importadas.
Também, não
dispomos de qualquer rastreabilidade quanto à origem deste leite e ainda menos da
sua composição, uma vez que têm escamoteado o facto de não se tratar de leite
de ordenha mas sim de leite reconstituido. Estes factos constituem, por si só,
violações à lei 24/2009, art. 1a, que estipula a obrigação de explicar a
natureza e composição do produto.
É também obvio
que esta iniciativa não tem por objectivo a substituição de importações com impacto na balança de pagamentos, porque uma
importação é substituida por outras. Assim, parece que esta lei foi adoptada
com o único propósito de enriquecer um punhado de indivíduos em detrimento de
toda a população.
De acordo com um
especialista na matéria, este leite reconstituído contém menos nutrientes
(vitaminas B, Zinco, Selénio e fósforo, por exemplo) que são fundamentais para
manter uma população saudável. No entanto, isso não impediu o governo e o maior
partido da oposição de votarem um aumento considerável dos impostos sobre as importações de leite em benefício da
produção de um leite de menor qualidade e artificialmente mais barato.
Infelizmente, a grande maioria da população, por razões
económicas e desconhecimento das implicações a longo prazo, optará sem dúvida, pela
aquisição dessa mistura articifialmente mais barata em vez da alternativa
nutritiva. As consequências para a saúde a longo prazo, não constituem matéria
para preocupações uma vez que já cá não estarão - entenda-se o governo - para acatar com as responsabilidades e
consequências que daí advenham.
Esta total ausência de responsabilidade social e de
preocupação com a população é absolutamente chocante e inadmissível.
Sem qualquer intenção de atirar pedras para quem quer
que seja, não posso esconder a minha estupefacção face ao silêncio gritante dos
médicos, nutricionistas, advogados e organizações de defesa do consumidor -
para mencionar apenas alguns - desta terra abandonada pelos deuses. É como se tivéssemos
sido enfeitiçados, transformados em zombis que prosseguem o seu caminho sem
olhar para trás e ignorando os danos irreversíveis.
No que me diz respeito, recusar-me-ei a consumir mais
esta ofensa ao povo de Cabo-Verde.
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