CABO-VERDE: UM CAOS “SABIDAMENTE” ORQUESTRADO
CABO-VERDE: UM CAOS “SABIDAMENTE”
ORQUESTRADO
Ao ler “Uma Crónica de desassossego” de Leão Lopes,
publicado no Jornal “Expresso das Ilhas”, que faz jus a vários outros relatos,
pareceu-me necessário lançar uma pequena reflexão sobre as angústias e neuroses
do nosso dia-a-dia, em grande parte alimentadas quase que por uma síndrome de
abandono.
O que narra a crónica, aplica-se, 'mutatis mutandis', a todas as esferas da
sociedade caboverdeana, estendendo-se de forma transversal do sector público à
esfera mais privada.
Da saga dos transportes marítimos, sobre os quais foi
já quase tudo dito, à tragicomédia dos transportes aéreos que só parecem
existir para e em função da Praia, como uma espécie de aplicação ridiculamente anacrónica
do adágio, « todos os caminhos vão dar à Roma’.
Se por falta de um aeroporto internacional digno deste
nome, beneficiávamos de vôos diários para o Sal, agora somos forçados a
retroceder no tempo e passar pelo Cabo das Tormentas - num ritual de vassalagem
imposto pelos nossos suseranos.
Trata-se duma decisão política discutível, que se
inscreve na diagonal duma politica interna geral e cujas implicaçoes são profundas
pela gravidade e extensão do seu impacto
tanto a nivel politico como socio-económico e psicosocial.
A nível político porque estabelece, nolens
volens, uma hierarquia entre as ilhas e, consequentemente, entre os
cidadãos, reduzindo assim, metade deles, a cidadãos de segunda categoria ;
uma espécie de nova plebe submetida uma aristocracia colonial auto-proclamada.
A nível económico Para além do impacto
financeiro imediato - uma viagem para o Sal que antes custava à volta dos 10.000 ECV, passou a custar cerca
de 30.000, sem mencionar os custos de estadia na capital. Acrescenta-se a tudo
isso as inevitáveis perdas a médio e longo prazo para
além do fomento quase impiedoso de brutais discrepâncias de nível de vida entre
Praia e restantes ilhas.
Atendendo à situação económica do país, poucos são os
que se podem dar ao luxo de incorrer em tais despesas, ainda que seja por
razões de força maior; no que respeita os emigrantes, é improvável que estejam
dispostos a pagar mais 280 € por pessoa. Os turistas, a quem pouco apetece
fazer stop overs desnessários e desperdiçar um valioso dia de férias em
aviões e aeroportos, procurarão, num ápice, outros destinos mais acolhedores e,
definitivamente, menos trapalhões.
In fine, uma miopia política que acaba por
penalizar os cidadãos mas também o país na sua globalidade, atendendo à
importância que os emigrantes e o turismo revestem para a sua economia.
Outrossim, a nível interno, esta política acabará por
aprofundar as clivagens sociais existentes e por provocar outras novas;
verticalmente entre as classes sociais e horizontalmente, entre as ilhas.
Pensando bem no assunto, em vez do estatuto especial
para Praia, dever-se-ia reflectir sobre uma indexação salarial que tenha em conta
os custos de vida adicionais ocasionados por uma política nacional abusivamente
centralizadora.
A nivel psicosocial : é, contudo, neste nível
que o efeito mais perverso e perigoso se faz sentir, a meu ver. Aplicado de forma consistente, esse modus
operandi acaba por incutir, de forma insidiosa, em cada indivíduo, um sentimento de impotência, de fatalismo e de
aceitação do carácter ineluctável da sua sub-condição. Aos poucos, acabará por
transformar a sociedade num bando de zombis, demasiado entumecidos pelo seu dia
à dia para se preocuparem com o destino colectivo.
O que foi dito no artigo em referência, sobre a
incúria e abusos a que se devem submeter os cidadãos nos barcos, aplica-se a
todas as esferas da sociedade ; aos
bancos, às instituições publicas e para-estatais, ao exército e mesmo à rua.
Senão, vejamos: apesar de serem, em geral, atribuidos números
para atendimento público - devendo garantir o princípio democrático do ‘first
come first served’- não é nada infrequente ver uma, duas, três pessoas ...
chegarem e serem atendidas sem ter que aguardar a sua vez. Um ligeiro aceno de cabeça é suficiente; e
ninguém ou quase ninguém reage. Quer
isto dizer, que as pessoas já estão condicionadas para aceitar um tratamento
desrespeitador e inferiorizante.
A constante falta de civismo é, também, absolutamente
insustentável. Não é raro ver pessoas atirarem lixo para a rua, só porque
sim; jovens a serem grosseiros, só
porque… ; constatar a destruição tanto de bens públicos como privados,
simplesmente porque ... ; estacionar carros à frente de garagens alheias,
ou no meio de vias públicas simplesmente porque... atrocidades cometidas por
militares porque...
A sociedade caboverdeana está, toda
ela, infiltrada pela normalização de comportamentos anti-sociais e corruptos.
A maioria é vítima, muitos são perpetradores e outros são espectadores. Poucos são ainda aqueles que se opõem e resistem à ‘banalização do mal’
Tudo acontece de forma muito subreptícia. O desespero
em que se encontra mergulhada a população, no seu quotidiano, depara-se com um silêncio desdenhoso das autoridades, tanto
centrais como locais.
Ah pois, porque aqui as Câmaras também fazem o que bem
lhes apetece, à revelia dos valores democráticos (vide a situação dos
vereadores na CMSV, construções aleatórias, destruição do patrimonio
urbanístico e...).
O modo como tem sido gerida a pandemia é também
paradigmático da falta de coerência, do ‘m’en foutisme’ e da total ausência de
ética com que são tecidas as decisões e actuações deste governo. Dito isto, o
aproveitamento massivo e oportunista desta situação por todos os partidos,
durante as campanhas eleitorais, não terá escapado a ninguém.
Numa situação de pandemia altamente infecciosa e
mortal, como é que se pode explicar que o governo tenha feito vista grossa à campanha
eleitoral e inevitáveis aglomerações, apesar das recomendações das autoridades
sanitárias, ao mais alto nível?
O resultado está à vista com um crescimento
exponencial de casos.
Mas quem é que responde por tudo isso? E agora, com
que autoridade é que podem exigir às pessoas que respeitem o confinamento, com
que credibilidade?
A
pergunta que nos ocorre, porém, é: quem beneficia com este caos organizado?
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