JULGAR A HISTORIA

 

JULGAR A HISTORIA COM PADROES INADEQUADOS

 

Julgar a história, eis uma equação dificil de resolver, porque na maior parte do tempo, nem os autores nem as vítimas directas já cá estão. Porém, por mais difícil que seja, é necessário encará-la de frente e fazer uso da crítica histórica para restabelecer os factos.

Que eu não concorde com a destrução de estátuas e monumentos, quer seja em Palmira, Lisboa, Londres, Bamako ou Nova York ou em Mindelo é, para mim, uma evidência sem apelo. São marcos da nossa história, tanto dos seus momentos mais gloriosos como dos mais obscuros e vergonhosos e, é a partir do estudo e da análise dos acontecimentos, e do restabelecimento dos factos, que podemos construir um futuro melhor ou pior. A escolha é e sempre foi nossa.

Se julgar factos ocorridos em outras épocas, com os paradigmas e parâmetros de hoje, parece totalmente inadequado, não podemos negligenciar o facto que, mesmo nesses tempos recuados, vozes dissonantes abolicionistas se ergueram.

Já em 1315, o Rei Carlos X, aboliu o esclavagismo em França. Em 1542 Carlos V de Espanha editou as ‘Leyes Nuevas’, em substituição ás ‘Leyes Burgos’, editadas pelo Rei Fernando II de Aragão em 1512, afim de pôr um termo aos maus tratos contra os índios, nas terras conquistadas. Em 1686, o Papa Innocent XI condenava a escravatura sob a instigação de Lourenço Silva Mendouça. Ou seja, atrocidades, quer tenham sido contra escravos, judeus, índios, africanos ou populações de terras conquistadas ou outras circunstâncias, nunca encontraram uma unanimidade absoluta o que significa que a noção entre o bem e o mal sempre existiu.

Os exemplos são vários, quer de indivíduos quer de personalidades públicas que se opuseram sistematicamente contra aquilo que nós, hoje, qualificamos de violação dos direitos humanos. Portanto, do meu ponto de vista, a escravatura foi uma escolha consciente das elites de várias épocas. 

Contudo essas vozes eram marginais e, sobretudo, existiam num mundo segmentado e de geografia variável, onde o Direito Internacional não existia, ou então de forma embrionária, sob forma de tratados, bilaterais e mesmo interpessoais.

Todavia, se não nos é possível mudar o passado, é importante que o rectifiquemos, na medida do possivel, afim de devolver a dignidade àqueles que ainda se sentem dela espoliados. 

Não será destruindo e saqueando estátuas nem monumentos, por razões ideológicas ou religiosas mas repondo a verdade histórica, integrando-as em programas pedagógicos ou revelando-os através das artes de modo a devolver a dignidade aos herdeiros de uns e a conscientizar os herdeiros de outros. Diria mesmo conscientizar a todos já que ninguém está ao abrigo de nada.

Não se trata de acusar porque os autores já cá não estão para assumirem as consequências dos seus actos - que nem com o passar do tempo deixam de ser abomináveis – mas, simplesmente de restabelecer os factos. Compreender e aceitar os factos talvez contribua para mudar o modo como uns olham e apreendem os outros e o modo como nos vemos a nós próprios. A mudança desse olhar não é sem significado porque é por aì que podemos encetar uma caminhada humana, de mãos dadas e despida de  ressentimentos e preconceitos nocivos.

Estudos recentes de psicologia defendem a idéia de que herdamos, todos, das neuroses dos nossos antepassados, porque os traumas por eles vividos se inscrevem no nosso ADN, como indeléveis livros de história. É portanto, imprescindível proceder a uma terapia colectiva que passe pelo restabelecimento dos factos históricos, pela  aprendizagem universal, pelo conhecimento e reconhecimento da génese e alastramento das várias formas de discriminação e iniquidades bem como pela correcção dos desvios de hoje herdados de ontem.

 A aceitação de uns e o perdão de outros só pode ter lugar num quadro desse conhecimento e reconhecimento. São permissas sem as quais não podemos encetar uma nova caminhada de mãos dadas com a cara virada para a frente mas sem nunca perder de vista o retrovisor, com o único objectivo de evitar os erros do passado.

Vivemos neste momento, uma daquelas encruzilhadas históricas, um desses momentos de crise cuja resposta/reacção politica determinará o futuro. É disso sintomático, o movimento nos EUA em seguimento ao assassinato do George Floyd que se propalou pelo mundo fora. Ou encontramos uma solução adequada que respeite os direitos e aspirações de todos, ou corremos para uma grande catástrofe. É uma responsabilidade que nos cabe a todos.

A respeito dessa responsabilidade individual e universal, deixo, para reflexão, a análise de E. Levinas[1] sobre a famosa frase de Dostoievski, no seu livro: ‘Os Irmãos Karamazov”[2]:

 Somos todos culpados de tudo e de todos, e eu mais do que os outros[3]

Esta responsabilidade ou “culpa”, segundo E. Levinas, deve ser entendida no quadro de uma intersubjetividade sem reciprocidade e não por causa de nenhuma culpa realmente e assumidamente ‘minha’... “mas porque sou responsável de uma responsabilidade total, que responde por todos os outros e por tudo nos outros, até mesmo pela sua responsabilidade. A minha responsabilidade é sempre maior do que a dos outros. "

 Nelson Mandela, também escolheu o perdão e a reconciliação.

 



[1] Ethique et infini. Dialogues avec Philippe Nemo, Paris, Fayard, 1982, p. 10

 [2] Les Frères Karamazov, La Pleïade, p. 310

 

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