O MUNDO AS AVESSAS

 

Já perdi contas aos postings nas redes sociais, a denunciar o abandono em que se encontra a ilha de S. Vicente com incidências tangíveis sobre a saúde físca e mental dos seus habitantes.

Quantas vezes não ouvimos que pessoas – idosas, doentes, funcionários e crianças – passaram a noite em claro, embaladas, ora pelo latir incessante dos cães vadios e sarnentos que circulam livremente pela ilha, defecando aqui e ali, ou eviscerando os sacos de lixo pela cidade fora;  ora pelo vrombir ensurdecedor de motas que zigzagueam, abertamente, de rodas ao ar e nas mais inverosímeis acrobacias, na barba cara das «autoridades » ; ou ainda pelos grupinhos da ‘night’ aos berros e cuja linguagem faria corar de vergonha um tomate.  

Em relação à  questão das motas, em particular -  por viver nas proximidades do Comando da polícia desta ilha, onde este tipo de comportamento no mínimo, anti-social e nocivo,  continua a ser exibido -,  sempre tive uma certa dificuldade em perceber a persistência desse comportamento que se transformou numa verdadeira praga, porque exibida de forma aberta e desafiadora nas  principais artérias da cidade. Afinal, trata-se de uma pequena ilha e não propriamente de resolver uma questão de física quântica.

As minhas dúvidas, incertezas e perplexidade sobre o assunto, foram clarificadas por um agente da polícia, num incidente muito recente. Não sei se serão fidedignas de tão  insustentáveis e inaceitáveis que são, tanto do ponto de vista legal como ético. Uma vida em sociedade, na «Polis», já dizia Platão há 2500 anos, só é possivel a partir da adesão de todos às leis e à ordem pública, o que implica uma certa ordem e respeito pelos outros.  E 2500 anos depois,  ainda andamos nós cá à deriva…

Passando, à frente do Comando da Polícia, em plena luz do dia, vejo uma mota em acrobacias, de rodas para o ar, num vrombido ensurdecedor, em frente a um automóvel da polícia, em modo de total desrespeito às autoridades. Ainda sem estacionar o carro,  saiu um dos polícias que,  para o meu espanto, não se dirigiu ao motociclista em infracção descarada e provocante à lei, por condução perigosa ; estaciono o meu carro e dirijo-me ao agente em questão para tentar preceber o que acabara de se passar, e dar sentido ao que os meus olhos viram mas não acreditaram.  Respondeu-me que os agentes da polícia não estão autorizados a intervir nesses casos, a menos que recebam ordens expressas da hierarquia para uma operação precisa e específica ». Acrescentou que tem havido operações, esporádicas e que têm sido apreendidas centenas de motos, sem que contudo, estaremos todos de acordo, se tenha resolvido o problema.

Quer isto dizer, que os motociclistas surpreendidos em flagrante delito de condução perigosa e comportamento anti-social,  podendo mesmo pôr em perigo a vida de outros cidadãos, são livres de violar a lei, na certeza porém da sua total impunidade.

A questão que me veio à mente nesse momento,  foi o que aconteceria se o condutor de um veículo  se pusesse a gincanear e ziguezaguear pela cidade fora? Teriam os agentes da polícia autoridade para o interceptar ou teriam que esperar por ordens expressas da hierarquia?  Porque se for  este o caso, estamos muito mal. Na realidade,  seja qual for o caso, não estamos mal, mas péssimos.

No primeiro porque a lei seria selectiva e não aplicável a todos os cidadãos de igual forma, como seria de esperar num Estado de Direito; no segundo, porque significaria um regresso  ao estado de natureza Hobbesiano que posto de forma muito simplificada, “é cada um por si e Deus por todos”.

A questão dos cães e do saneamemento público, bem como a moda de pessoas “se aliviarem” em público, dia e noite, e o seu o corolário odor fétido,  de urina e mais, que tresanda alegremente por uma cidade, que se quer turística,  fazem parte da mesma praga e  campanha. O objectivo, estou convicta,   é certamente o de vencer o povo desta ilha pelo cansaço.  Já dizia um meu amigo angolano : « Que até aos sapatos apertados, nos habituamos », referindo-se ao período de guerra civil em Angola.

E de facto, para muitos já é normal ver matilhas de cães pela cidade fora. Já é trivial por-se de pé ou de côcoras num canto de rua, ou à frente da porta de um desgraçado e aliviar-se.

Embora, incomode, canse e adoeça, já é normal passar noites de insónia porque o cão do vizinho ou os cães vadios não se calam; já é absolutamente normal ir trabalhar depois de uma noite em branco, porque os motociclistas podem, querem e mandam; já é normal não sair à rua para dar um passeio depois do por do sol porque o risco de “Cassu body” que já é grande por si só, aumenta de forma inversamente proporcional à escuridão em que vão sendo mergulhadas as ruas de Mindelo.  Vivemos numa “penumbrinha” constante e assustadora.

Se tudo isto não faz sentido, qualquer que seja o ângulo de análise, a questão que se impõe , obviamente, é a razão da  possibilidade da existência e persistência de uma situação tão absurda e desnecessária.  

É certo, e não terá escapado a ninguém, que o nosso mundo encontra-se em plena mutação, afectando os valores e o próprio  pensamento. O que antes era certo ou errado, derivando de valores morais e éticos ou de factos tangíveis e mesmo cientificamente provados, hoje são relativizados à luz de interesses políticos e lobbies mais ou menos obscuros e de onde emanam eflúvios autoritários. O pensamento individual e o livre arbítrio são substituidos por um fundamentalismo global e pensamento e linguagem uniformizadas. Privada, aos poucos das suas possibilidades hermenêuticas,  a linguagem manipulada, acaba por gerar uma dissociação entre o pensamento e a coisa efectivamente pensada.  É um mundo de faz de contas extremamente perigoso. 

Numa sociedade onde o desemprego é estrutural, a pobreza endémica, a injustiça institucionalizada e a opacidade uma doutrina,  teríamos mais razões para estranhar a apatia geral do que  qualquer movimento de resistência. Testada, vezes sem fim, essa apatia resiste e persiste, para grande mal dos nossos pecados.

Mas ainda assim não perco a esperança de ver esta ilha estimada, cuidada e desenvolvida de forma harmoniosa como merece.

Até lá, entre um Presidente “poeta”, com matizes narcisistas, um Primeiro Ministro deslumbrado e com a eterna expressão de quem precisa dum GPS e uma CM completamente inútil, todos igualmente empenhados em transformar Mindelo no pior do Terceiro Mundo, só  Deus nos pode acudir.

Sónia Almeida

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