Entre o Sonho e o abismo


Acordei com um sentimento estranho, denso, difícil de sacudir. Tinha sonhado um daqueles sonhos demasiado vívidos para serem ignorados. Nele, duas narrativas cruzavam-se: uma colega da universidade, ausente há quase quarenta anos, lutava para proteger os filhos de um complot organizado; e, noutra cena, encontrava-me numa conferência conduzida pelo Presidente Biden, que nos alertava — com a serenidade de um professor e a solenidade de um chefe de Estado — para a inevitabilidade da III Guerra Mundial.

As imagens sucediam-se com uma lógica brutal. Um míssil, em vez de atingir a ilha para onde fora dirigido, colidiu com um navio de guerra do século XVIII, de velas brancas e casco de madeira. Do impacto não resultou uma explosão, mas o lento afundar de milhões de peixes que, ao olhar mais atento, não eram senão cadáveres humanos. Afundavam-se em câmara lenta, em direção às profundezas do oceano, como um cortejo fúnebre da humanidade.

Não é difícil perceber a ressonância destas imagens. Vivemos num mundo saturado por discursos apocalípticos, onde os media globais repetem visões de catástrofe, onde as redes sociais despejam torrentes de ruído e violência verbal, e onde maiorias silenciosas se encolhem perante minorias organizadas e barulhentas. Um mundo onde se tornou aceitável clamar pela destruição de um povo, menos de oitenta anos após o Holocausto; um mundo em que a lógica, a razão e os factos são tratados como crimes de opinião.

À luz de Hannah Arendt e da sua “banalidade do mal”, o sonho não é apenas uma construção subconsciente, mas um espelho perturbador da nossa realidade. O mal já não precisa de grandes gestos, basta a normalização da irracionalidade e da indiferença. Basta que as pessoas, como no sonho, vejam os cadáveres a afundar e desviem o olhar, seguindo a rotina.

E contudo, o sonho também revela outra coisa: a insistência da vida em resistir. A figura da colega perdida no tempo, os filhos que precisam de proteção, encarnam a dimensão íntima e frágil que continua a exigir defesa, mesmo no meio do colapso anunciado. Talvez seja esse o verdadeiro dilema: entre a destruição global e a responsabilidade pessoal, entre a violência organizada e o dever íntimo de proteger o que é humano.

Que permaneça um sonho. Que a insanidade que o inspira não se concretize. Mas para isso é preciso mais do que rezar: é preciso despertar.


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